Erêndira! Sim, avó...
Março 16, 2018
A noite de ontem foi uma viagem até ao mundo de Gabriel Garcia Marquez, aquela Colômbia esquecida pela maior parte dos países desenvolvidos, pela Europa que fervilha mas que se esquece do quente do deserto e dos trópicos da América Latina.
Aquela América em que morre muita gente, aquela América que independentemente dos regimes políticos existentes continua a imanar um cheiro de terra chorada. Pois é apenas esse cheiro a quente que falta ao entrarmos na sala do Teatro A Barraca, o resto está lá tudo.
Aqueles bigodes retorcidos em tez queimadas pelo sol, aquela música latina que se liberta da rádio ou dos músicos, aquelas vozes quentes que nos fazem viajar, este é o ambiente certo para subir a palco o texto de Rita Lello inspirado no conto A incrível e triste história da cândida Erêndira e a sua a avó desalmada, de Gabriel Garcia Marquez.
“Estava Erêndira a dar banho à Avó quando começou o vento da sua desgraça”, é assim que começa a história: uma avó, a Avó interpretada pela brilhante Maria do Céu Guerra, e uma neta bastarda com os seus 14 anos, Erêndira interpretada por Sara Rio Frio. A primeira anafada, desalmada, sonhando com os falecidos heróis da sua vida e ambicionando o mar, a segunda isolada, criança, simples, dedicada, apenas uma virgem que nasceu “ao contrário, com os órgãos de fora, na alma do deserto. Não vive por dentro, está cheia de espaço. Só a liberdade a poderá virar do avesso”.
Pois a realidade aqui retratada é a da exploração de menores na Colômbia, Erêndira apenas irá dizer sim a cada chamamento, ordem ou desabafo da sua avó. A exploração só muda de “tom” quando a jovem incendeia a casa onde vivem devido ao excesso de cansaço e ao vento que traria a mudança.
Aquela mulher desalmada iria obrigar a sua neta a pagar cada peso para pagar a reconstrução da sua casa, que aqui será melhor retratada como a reconstrução do seu sonho. A exploração passa a ser sexual, vendendo a virgindade da sua neta por poucas centenas de pesos. A fonte de receita não esgotará enquanto Erêndira estiver viva. De 70 em 70 pesos, a jovem vai-se cansando e morrendo por dentro, a avó vai rejuvenescendo e sonhando com a sua ilha de Aruba.
Peso a peso... “Se as coisas continuarem assim pagas-me a dívida dentro de oito anos, sete meses e onze dias...”
Aquela nudez que nos toca, aquela gargalhada da velha que nos fere, aquele constante reboliço de entre e sai de homens na tenda da jovem, aquele anjo sem asas que nos faz a nós público querer cravar uma espada mágica nas banhas asquerosas da avó.
Mas só a nós parece importar.
À volta daquela exploração sexual instala-se um circo: tocadores de musicas para acompanhar a espera dos homens, fotógrafos, artistas de circo, aberrações de saltimbancos, índios escravizados e sonhos. Sonhos de amor, sonhos de liberdade.
Rita Lello refere que não podemos “olhar para esta narrativa senão como uma metáfora”, pois esta metáfora, tal como as obras de Marquez, é uma metáfora excelentemente criada para criticar os problemas sociais e políticos desta sociedade latina.
Os ventos que sopram a vida de ambas as personagens são o destino. E este destino está bem regado de maldade e candura, onde “o bem vence o mal ou porque aprende com ele”.
Um texto brilhante, uma encenação (também de Rita Lello) que faz arrepiar com a originalidade e ousadia, a mistura das diversas artes de imagem e depois a interpretação gritante de todo o elenco mas de salientar o trabalho de João Maria Pinto, Adérito Lopes, Ruben Garcia e a jovem Sara Rio Frio.
Erêndira! Sim, avó... é tudo isto e depois é ainda mais Maria do Céu Guerra numa interpretação avassaladora.
Rita Lello diz que “O texto de García Marquez é um texto de imagens, um texto para ser imaginado, não para ser dito mas para ser lido. Para ser visto com a imaginação”. Aqui ela ajudou-nos a imaginar.
No final, aplaudimos-vos de pé e esperando que o público perceba o bom teatro que se faz no teatro A Barraca. Não será o mais comercial, não será apropriado a todos os pequenos cérebros que percorrem as ruas mas é o teatro que vocês fazem, tal e qual como são ou que querem ser.
“Romper os circuitos fechados, dar a volta ao mundo com a nossa língua, com os nossos panos, com as nossas histórias” contamos convosco.
Elenco Técnico e Artístico:
Direcção e Adaptação: Rita Lello
Assistente Encenação: Rita Soares
Espaço Cénico: Rita Lello
Carpintaria: Mário Dias
Figurinos: Maria do Céu Guerra
Adereços: Marta Fernandes da Silva
Assistente Guarda-Roupa: Sérgio Moras
Costureira: Zélia Santos
Selecção Musical: Rita Lello
Música original e arranjos: João Maria Pinto
Desenho de Luz, Video e Edição: Paulo Vargues
Sonorização: Ricardo Santos
Assistência à Montagem: Fernando Belo
Animações: Paulo Vargues
Relações Públicas e Produção: Inês Costa, Paula Coelho, Sónia Barradas
Fotografia: Ricardo Rodrigues
Elenco: Maria do Céu Guerra, João Maria Pinto, Sara Rio Frio, Adérito Lopes, João Teixeira, Rita Soares, Ruben Garcia, Samuel Moura, Sérgio Moras, Alexandre Castro, David Medeiros
créditos de fotografias: A barraca